Entrevista com José Pacheco, da Escola da Ponte: “O professor deve ser um mediador de conhecimentos”
Leia matéria sobre o Projeto Âncora, coordeando pelo educador português José Pacheco, e em seguida, uma entrevista com ele.
Não temos séries, nem ciclos, nem classes, nem nada…
Projeto
Âncora segue metodologia da Escola da Ponte, com orientação do português
José Pacheco, educando cerca de 350 crianças de baixa renda
gratuitamente
Por Adriana Delorenzo e Renato Rovai
Esta matéria faz parte da edição 123 da Fórum
(Fotos: Adriana Delorenzo)
Ao
entrar no projeto Âncora nem parece que se está numa escola. A
iniciativa, localizada no município de Cotia (SP), está longe de ser uma
proposta tradicional. Inspirada pela Escola da Ponte, de Portugal, lá
não há séries, provas e as salas de aula comuns, com um professor
falando para alunos organizados em fileiras. Tenda de circo, pista de
skate, muita área verde e salas sem divisões compõem o espaço.
A
história começou em 1995, quando o empresário Walter Steurer passeava
pela região onde morava e viu um terreno à venda. “Ele foi um empresário
de muito sucesso e, quando se aposentou, vendeu a empresa, e tinha a
ideia de continuar fazendo coisas. Quando comprou o terreno pretendia
fazer um condomínio de casas”, conta a esposa Regina Steurer. Mas o
destino da área acabou sendo outro. “Ele decidiu empregar o dinheiro que
já tinha ganhado em algo que fizesse sentido. Walter tinha claro que o
Brasil tinha dado para a família dele tudo que eles tinham, era uma
família austríaca, que chegou aqui fugida da Primeira Guerra. Ele
pensou: ‘Tenho que devolver ao Brasil o que o país me deu’”, lembra
Regina, que fundou o projeto Âncora ao lado do marido.
Quinze
dias antes de Walter Steurer falecer, em 2011, o educador português
José Pacheco entrou em contato dizendo que aceitara o convite para
orientar o Âncora e transformar o projeto numa comunidade de
aprendizagem. Reparem a sutileza. Comunidade de aprendizagem, e não uma
escola. Pacheco já tinha conhecido o projeto cerca de cinco anos antes,
quando tinha feito uma palestra no local. A iniciativa foi criada com
três núcleos: de educação infantil, com período integral, para crianças
entre 2 anos e a idade de entrar no ensino fundamental; o ensino
complementar, que recebia adolescentes da escola pública no contraturno
escolar; e cursos profissionalizantes, para jovens e a comunidade.
“O
nosso sonho era ter a escola de ensino fundamental para ficar com as
crianças o dia inteiro, mas não poderia ser uma escola qualquer”,
explica Regina. Conhecida como um marco pedagógico, a Escola da Ponte,
localizada em S. Tomé de Negrelos, no distrito do Porto, em Portugal,
desenvolveu um método pedagógico no qual é valorizado o conhecimento do
aluno. “Não temos séries, nem ciclos, nem classes, nem nível, nem nada,
porque isso não tem fundamento cientifico”, afirma Pacheco.
Quem
explica como funciona o Projeto Âncora é a garotinha Allanys, de 10
anos. São sempre os alunos que levam os visitantes para conhecer o
local. E é impressionante o envolvimento das crianças com o projeto.
Allanys conta que é a própria criança quem define seu planejamento. No
dia da visita da Fórum,
entre os conteúdos que ela iria estudar, estavam o sistema solar e a
história da princesa Isabel. Quando o aluno sente que já sabe o
conteúdo, solicita ao professor uma avaliação. O professor conversa com o
aluno e, se sentir que ainda é preciso aprender mais, orienta o aluno a
procurar mais informações. Nesse caso, incentiva-se o aluno a buscar
informações nos livros, internet e com os colegas. Em vários locais há
uma lista onde, em uma coluna, se inscreve quem pode ajudar, e na outra
quem precisa de ajuda. Cada aluno tem um tutor, que é um professor
responsável por um grupo de alunos. São feitas assembleias a cada 15
dias para debater problemas da escola.
Para
José Pacheco, o professor deve ser um “mediador de conhecimentos”.
Segundo ele, esse modelo da Ponte é bem mais barato que as escolas
tradicionais e apresenta melhores resultados. De acordo com o educador,
em Portugal os alunos da Ponte conseguem melhores notas que os de outras
escolas quando chegam ao ensino médio.
Hoje,
já são mais de mil com projetos semelhantes no mundo que seguem as
práticas adotadas na Ponte. “Não é clonagem, as escolas não são
réplicas, mas se inspiraram na Ponte, e cada uma faz um melhor trabalho
do que fazia antes, mudando sua forma de trabalhar”, diz Pacheco.
“Gostaria
que todas as crianças do Brasil tivessem o que as nossas têm”, afirma a
gestora do Âncora, Suzana de Camargo Ribeiro. Hoje, estudam no Âncora
cerca de 350 alunos gratuitamente. Para entrar na escola, é preciso
morar na comunidade e as famílias têm que ter renda de até três salários
mínimos. “A gente prioriza que todos os irmãos estejam na escola. Isso é
o que é hoje, mas não é o que a gente sonha. Sonhamos para todos”,
complementa Regina.
O
maior desafio do Âncora, segundo os gestores, é o financeiro. No
início, o empresário Walter mantinha o projeto. Conforme o diretor do
projeto Fábio Zsigmond, hoje a iniciativa se sustenta por meio de
doações de associados (30%) e de fundos incentivados, do imposto de
renda de pessoas físicas e jurídicas. O orçamento anual é em torno de
1,5 milhão de reais. “A gente não tem um fundo estável, todo ano tem de
ir atrás”, finaliza.
As escolas brasileiras são como usinas que engolem gente e vomitam bagaço
O
educador José Pacheco é idealizador da Escola da Ponte, localizada a 30
quilômetros de Porto, em Portugal. Lá ele conseguiu colocar em prática,
desde 1976, métodos que fogem das escolas tradicionais. Sem séries,
ciclos, provas, paredes e muros, sua proposta, como ele faz questão de
dizer, não é feita só com um professor, conta com a participação de toda
a equipe, que se mobiliza para ousar e fazer uma educação diferente.
Para Pacheco, já está provado que a forma como o Brasil está educando as
suas crianças e jovens não deu certo. Crítico, ele defende que, em vez
de avaliações e rankings, sejam criadas comunidades de aprendizagem,
onde os alunos vão construindo seu conhecimento, uns com os outros. Para
ele, não dá mais para se pensar em salas de aula com um professor
falando para os alunos enfileirados. Morando no Brasil, onde coordena o
projeto Âncora, Pacheco afirma que a Ponte pode servir de “protótipo”
para outras escolas, mas cada uma deve encontrar o seu jeito de fazer.
Leia a seguir a entrevista com Pacheco, que é autor de diversos livros
entre elesCaminhos para a Inclusão (Artmed) e Escola da Ponte (Vozes).
Revista
Fórum – O senhor é crítico em relação à forma como o Brasil tem
desenvolvido seu projeto educacional e costuma dizer que não estudamos
nem aplicamos os ensinamentos de grandes educadores como Paulo Freire,
Darcy Ribeiro e Anísio Teixeira. O que está errado no projeto de
educação no Brasil?
José Pacheco – Não
é justo que se faça isso e que se continue a promover um modelo de
escola do século XIX, com o professor sozinho na sala de aula. Não
encontro explicação para os 30 milhões de analfabetos que o Brasil tem,
por isso é preciso ousar. Mas com responsabilidade, não estou falando de
oba-oba. No Brasil, como em Portugal e em outros países, continuamos a
ensinar jovens do século XXI com professores do século XX e um paradigma
do século XIX. Esse é o principal problema. Com ou sem novas
tecnologias, aliás as novas tecnologias até podem contribuir para
aprofundar a crise se forem usadas em função do paradigma velho. E
quando falo isso é porque sei que há alternativas. O que acontece no
Brasil é que, para além de se desperdiçar recursos, basta dizer que o
último relatório da Fiesp [Relatório
Educação: gastos públicos e propostas de melhorias,da Federação das
Indústrias do Estado de São Paulo, de outubro de 2010], sobre dez
anos de desempenho do Ministério da Educação, mostra que o sistema
educativo brasileiro desperdiça por ano 56 bilhões de reais, isso é
inconcebível. Hoje, o custo aluno/ano do Brasil é um dos maiores do
mundo. Estamos em um momento em que é preciso dizer: Essa escola com
origem na França, na Prússia, na Inglaterra da Revolução Industrial,
acabou há mais de cem anos. O Caetano de Campos já falava isso no
Império. A questão é por que o poder público mantém esse monstro. Será
que é porque convém a alguém? Por que convém a indústria do cursinho?
Será que é porque convém que haja desigualdade, que haja marginalidade,
porque convém que haja tráfico? A questão é mesmo essa. Pergunto muitas
vezes a mim mesmo como, perante as evidências dos rankings e das
violências múltiplas que vivemos, dentro e fora do ambiente escolar,
como se consegue manter uma coisa dessas. Como diria João Cabral de Melo
Neto, as escolas brasileiras são como usinas que engolem gente e
vomitam bagaço. Ele escreveu isso há 50 anos, e continua assim. Eu sou
um crítico, um crítico desses titulares do poder público que continuam a
fomentar o desperdício, a infelicidade e a ignorância. Porque é
possível de outras maneiras. E é possível sem ir comprar do estrangeiro.
As soluções estão aqui dentro. Fico muito revoltado, a palavra é essa,
revoltado, quando vou às faculdades de Pedagogia e não vejo nas
bibliotecas nenhum livro do Lauro de Oliveira Lima, ou de outros de sua
geração, nem da Maria Nilde [Mascellani], nem de Nilza Silveira. Vejo os
Piagets, os Vygotskys e toda essa inutilidade europeia e
norte-americana ou asiática, porque o Vygotsky é da Rússia.
Mas o que fazemos aqui no Âncora poderá servir de protótipo, porque nada
se repete, para provar a possibilidade de eu ter crianças e jovens das
classes D e E com excelência acadêmica e inclusão social. Se nós
provarmos isso, sem ter um centavo do poder público, com crianças
“jogadas fora” das outras escolas no município com o mais baixo Índice
de Desenvolvimento de Educação Básica [Ideb]
do Estado de São Paulo, que é Cotia, eu quero ver o que o Estado
brasileiro vai fazer. O que as prefeituras vão fazer. Se vão continuar a
investir no desperdício ou se vão reconsiderar e perceber que esses
professores que temos aqui, esses educadores, são da mesma calha, com a
mesma formação, com a mesma cultura. E com eles se constrói uma coisa
assim.
No Projeto Âncora, as carteiras não são dispostas em filas, mas em
baias. E os alunos fazem seu programa de estudo do dia. E os professores
são tutores
Quando eu escuto certos responsáveis pelo Ministério da Educação falar
da Finlândia, eu pergunto se falam da mesma Finlândia que eu. Porque
quando os vejo introduzindo mais provas, mais exames… a Finlândia acabou
com os exames. Quando os vejo não respeitando o artigo 15º, a Lei de
Diretrizes e Bases, que concede às escolas sua total autonomia, eles
esquecem que na Finlândia as escolas são todas autônomas. Quando eles
engordam o Ministério da Educação, esquecem que na Finlândia enxugaram o
Ministério ao mínimo.
Fórum
– O senhor tem falado muito da questão da avaliação, que se tornou
modismo no Brasil. Mas também há a moda do apostilamento. E atualmente
muitas prefeituras têm adquirido métodos apostilados. Isso também não é
deletério para a educação?
Pacheco – Passo
grande parte do meu tempo entrando em escolas e o que eu vejo é sistema
apostilado, caro e quase sempre com um dinheiro por fora para alguém
que contrata. Já ouvi certos relatos que me deixam enojado, é este o
termo, de ver tanta máfia, tanta corrupção envolvendo educadores. Vejo
esses livros todos utilizados como consumidores de currículos e tornando
professores em papagaios. Enquanto vejo nos arquivos os livros que o
Ministério da Educação manda fazer e distribuir de graça para as
escolas. Estão lá, dentro dos plásticos, dentro das caixas, ninguém os
usa. E usam esse sistema apostilado. A pergunta é: Por quê?
Quando
você me fala de avaliação, eu pergunto: Qual avaliação? Eu não vejo
avaliação nenhuma. Que me perdoe a Fundação Getúlio Vargas ou outra,
onde está a avaliação nesse País? Qual avaliação? O que é o Ideb? O Ideb
não é o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica. É o índice de
“decoreba” na educação básica. Vamos aplicar a mesma prova passando
alguns meses e vamos ver se o resultado é o mesmo.
Segundo,
fluxo escolar, defasagem, por que há defasagem? Por que há ano letivo?
Por que há ciclos? Por que há séries? Se nada disso tem fundamento
científico. Por que é que se faz avaliação sobre o critério desses
indicadores? Ou seja, o que existe é classificação, e malfeita, rankings
que ignoram variáveis fundamentais, como a origem social, por exemplo.
No Brasil, não há uma cultura de avaliação, há uma cultura de ranking
leviano. O que me espanta é que gente que está na faculdade e que forma
professores na área da avaliação entre nessa indústria.
Avaliação,
nesse País, é muito simples fazer, basta verificar que aqueles que saem
do curso de Direito com um diploma não conseguem aprovação no Exame da
Ordem dos Advogados. Ou engenheiros que saem das faculdades brasileiras e
são substituídos por engenheiros estrangeiros, porque os brasileiros
não têm qualificação profissional para os cargos. Isso é avaliação?
Avaliação é saber que 4 milhões de brasileiros em idade escolar estão
fora da escola, o que é quase a metade da população de Portugal. Isso é
avaliação. Avaliação é perguntar: Você sabe raiz quadrada? E perceber
que, em cada cem, só três ou quatro crianças sabem. Ou seja, não
apreenderam. Avaliação é saber que, mesmo “papagaiando” e utilizando
apostilas, as crianças não aprendem, fazem decoreba, vomitam em prova e
se esquecem logo depois. Isso é avaliação. O resto é o faz de conta na
avaliação. O resto são milhões de reais gastos em pseudoavaliações. O
resto é alimentar um sistema que não reconhece os erros, porque as
avaliações que se fazem já estão comprometidas com os próprios
parâmetros, critérios e indicadores.
Fórum
– Isso não tem muito a ver com a lógica conservadora da escola, não só
com a questão política, não é verdade? Essa dinâmica de giz, lousa e o
professor sendo autoridade suprema está incorporada à escola há alguns
séculos e, por isso mesmo, os educadores parecem ter dificuldade em
abrir mão disso.
Pacheco – No
Brasil, muito mais, porque nós temos uma herança jesuítica. Não tenho
nada contra os jesuítas, grandes obras fizeram, mas legaram uma herança
cartesiana, positivista, que é pior. E temos um outro problema: a
universidade brasileira é uma das mais conservadoras que conheço. O
Pierre Lévy dizia que a universidade perdeu o monopólio do saber e
apenas mantém o monopólio da creditação do diploma. E esse é um problema
sério. Quando me convidaram, ainda em Portugal, para trabalhar na
universidade, diziam: “Na Ponte é possível, mas não é possível na
universidade”. Perdoai a arrogância, mas eu provei que era possível.
Mas o que mais me chocou quando entrei foi perceber que era uma
Faculdade de Educação e de Psicologia e que estudavam Vygotsky, uma
visão construtivista, e que estudavam toda a psicogênese, tudo que era
filosofia, pedagogia, sociologia da educação. Percebiam a desmontagem
feita por Foucault, Bourdieu, da escola que temos. Compreendiam isso
tudo, no domínio, no conceitual, e eu entrava nos espaços deles e era
cadeirinha atrás de cadeirinha, aluno olhando a nuca da frente e o
professor papagaiando aquilo que qualquer um deles poderia ler em um
livro em casa, sem precisar ir à faculdade. Eu perguntava: Onde é que
está a coerência? Nós temos uma universidade que é um monstro, e a
universidade é a matriz. O modo como o professor aprende é o modo como o
professor ensina. Se ele é formado escutando aula, ele vai dar aula. E
onde é que está o Vygotsky? Um dia, um doutor da faculdade me disse que
tinha doutorado em Vygotsky. E eu perguntei: “Por acaso você leu o
mesmo Vygotsky que eu li?”. É impossível considerar que, tendo estudado
até o doutoramento, Vygotsky continuasse a dar aula, porque é
contraditório.
A
universidade continua com essas práticas sacerdotais, da posse e venda
do saber, esquecendo que um professor não ensina aquilo que diz,
transmite aquilo que é. Então eles transmitem essa velha cultura, de O
nome da rosa [romance de Umberto Eco].
Fórum – O senhor tem feito isso na Ponte, e agora aqui no Âncora. Professor, qual é a receita da mudança?
Pacheco – Não
tem receita. Há uma atitude. Dentro dessas universidades que eu
critico, tem gente muito bem equipada intelectualmente, gente sábia,
gente boa. Eu não vou dizer nomes da universidade brasileira para não
criar constrangimentos, mas da portuguesa posso dizer: Antonio Nova,
Manuel Sarmento, Rui Canário, são as natas das natas da educação. No
Brasil, também há muitos, o Brasil tem tudo que precisa e a universidade
também. O que é preciso é coragem e responsabilidade. Coragem para ser
coerente com aquilo em que se acredita. Ou seja, escolas são pessoas.
Pessoas têm os seus valores, os valores transformados em princípios
fazem desenvolver projetos. Falta coragem para fazer, coerência entre
teoria e prática. Uma práxis coerente. E responsabilidade, porque tudo
isso depende também de conhecimento, ou seja, tem de ser muito bem
fundamentando e tem de estar enquadrado numa lei que o Darcy deixou em
1996, e que é quase perfeita: a Lei de Diretrizes e Bases na educação
brasileira. Cumprir aquilo que está na Lei de Diretrizes e Bases já é
revolucionário.
Fórum
– O Projeto Âncora não adota o sistema de séries. Como é que se dá a
passagem de ciclos? Como é o sistema de avaliação? Como se sabe se um
aluno está preparado para sair na nona série?
Pacheco – Não
temos séries nem ciclos, nem classes, nem nível, nem nada, porque isso
não tem fundamento científico. E como não tem fundamento científico,
como educador considero um insulto praticar isso. Se o Ministério
tivesse vergonha, não o faria também. Quando as crianças atingem a idade
de passar para outros ciclos, nesse momento, até muito antes, eles
adquiriram toda a grade curricular nacional, mais todo o chamado domínio
não cognitivo, se é que há algum domínio não cognitivo, pois as duas
coisas estão juntas. Mas há quem diga isso, pode ser que se refiram às
atitudes do domínio socioemocional, moral, ético, estético.
Essas
crianças, esses jovens estão aptos a sair como em qualquer outra
escola, ou melhor, melhor que em outras escolas. A avaliação acontece
quando o aluno sente que cumpriu determinada tarefa, que alcançou
determinado objetivo, que aprendeu determinado conteúdo, que cumpriu
determinado projeto. E a partilha daquilo que produziu enquanto
conhecimento é a avaliação. Eu consigo transformar a informação em
conhecimento, e ao transformar a informação em conhecimento, num
contexto de projeto, pego o conhecimento e vou colocá-lo em ação, ou
seja, desenvolver com crianças.
Avaliação
é quando o aluno quer, quando o aluno sente que é capaz de partilhar
conhecimento construído. Prova não é avaliação. E posso provar isso. É
um mau momento de deseducação, que também posso provar.
Fórum
– A escola da Ponte já deve ter uma serie de resultados que permitem
comparações em relação a outras escolas da rede em Portugal. O que esses
resultados demonstraram, professor?
Pacheco – Os
relatórios são realizados, as avaliações são realizadas, a pedido do
Ministério da Educação, e são realizadas por uma equipe de avaliadores
independentes, nomeados pelo ministério, que às vezes está até
interessado em acabar com o projeto da Ponte. Tudo é avaliado por alguém
externo, enviado pelo ministro da Educação. O que se tira dos
relatórios é que no domínio cognitivo, no estudo diacrônico e
comparativo, ou seja, comparando as notas dos ex-alunos da Ponte, quando
foram para outra escola, com as notas de cerca de dez escolas da
região, o resultado é este: em todas as disciplinas as melhores notas
são dos alunos da Ponte. Segundo, em relação às atitudes, quando vão
para outra escola, eles ensinam os outros a pesquisar, ajudam os outros a
aprender, formam associações de estudantes, participam ativamente. São
pessoas que colaboram, sabem pedir a palavra. No domínio da relação
escola-família, é a comunidade que dirige a escola, não pode haver maior
integração ou maior relação. Há vários parâmetros. A pergunta que faço é
aquela que me fazem muitas vezes: Se a Ponte é assim, por que é que o
Ministério da Educação, de Portugal, não torna todas as escolas como a
Ponte? Ainda bem que não o fazem. Porque nada poder vir por decreto. A
questão tem de ser outra, o Ministério da Educação tem de pedir conta
para as outras escolas do porquê não fazem aquilo que a Ponte consegue
fazer, com a vantagem de que a Ponte é a escola mais barata do meu País.
A mais barata. E recebe alunos que as outras escolas jogam fora, e os
recupera. Aluno que não aprende em outra escola, ou aluno que põe
professor em estado de coma em outra escola, vai para a Ponte. Aluno da
Febem de lá vai pra Ponte. Enquanto isso, as outras escolas produzem a
defasagem, uma classe de reforço, outra classe de aceleração. E na
classe de recuperação vai se dar mais do mesmo do que já foi dado. As
pessoas não entendem que continuando a dar aula vão continuar a
reproduzir esse déficit de darwinismo social. Como não percebem isso?
Não percebem que, quando expulsam um jovem, esse jovem vai voltar,
passado alguns anos, com um fuzil apontado para sua cabeça, não entendem
isso. E que isso é despesa, isso é prejuízo, isso é desperdício. Então,
por que é que não fazem uma Ponte? Porque essas escolas, nem os
sistemas educativos, são geridos pela Pedagogia e para o bem da criança,
são geridos por burocratas.
Fórum – Há escolas em São Paulo que se inspiram no projeto da Ponte, imagino que em Portugal devem ter outras tantas.
Pacheco – Sim,
vale lembrar que a maior parte não é projeto de escolas, são projetos
de professores dentro da escola. E muitos desses professores foram meus
alunos na Universidade, e agora estou me vingando, porque eles fazem a
diferença. Mas mesmo aqueles que não foram, o espírito da Ponte os
captou. Portanto, há muita gente muito boa fazendo um bom trabalho,
normalmente são criticados, são perseguidos, mas há quem resista. No
Brasil, há mais de cem escolas, que eu conheça, inspiradas na Ponte. Não
são a Ponte, não são uma clonagem, não são réplicas, mas se inspiraram
na Ponte. E cada uma faz um melhor trabalho do que fazia antes.
No mundo, que eu saiba, são mais de mil. E isso me assusta muito, porque
há a ideia de oba-oba, do vamos deixar de ter aula, vamos deixar de ter
série. E isso me preocupa, porque as pessoas têm de ter o bom senso de
perceber que a Ponte faz o que faz porque fundamenta. As pessoas têm de
ir devagar, porque grandes metas fazem-se com pequenos espaços. Porque a
criança não é cobaia e merece respeito. E muitas vezes, em nome da
Ponte e de muitas Pontes, fazem-se atrocidades. Tenho muito medo dessa
expansão rápida e não defendo a alta escala. Defendo o modelo de
contágio, porque acredito nos professores, na bondade e na inteligência
dos professores. E acredito no tempo. Não sou otimista, sou esperançoso.
O otimismo é da natureza do tempo, enquanto a esperança é da natureza
da eternidade.
Fórum
– Professor, o senhor acha que esse tipo da educação que se aplica aqui
no Projeto Âncora pode ajudar a melhorar o ambiente social, pode
contribuir para diminuir a violência na escola e fora dela?
Pacheco – Quando
se fala da indisciplina dentro da escola, eu pergunto se ela não é
filha do autoritarismo e da permissividade. Vou falar da nossa
experiência no Projeto Âncora. Esses jovens que apareceram aqui no ano
passado, jogados fora por outras escolas, vinham com esses sintomas, de
extrema violência, de desrespeito total, porque eles tinham sido
violentados e desrespeitados. Se eles não sabiam ler quando chegaram
aqui, com 10, 11, 12 anos, é porque não foram respeitados. Isso é um
exemplo de uma violência extrema, que foi condená-los ao analfabetismo.
Será que as escolas não vêm produzindo isso? Será que as famílias
continuarão a produzi-los? Será que é inevitável que nós tenhamos um
país assim? Onde a juventude é assassinada por aí? É preciso que a
escola pense qual é a sua responsabilidade no meio disso tudo.
Fórum – E qual é a responsabilidade da escola?
Pacheco – É
decisiva. A escola é a instituição de transição. Ou seja, se a família
os produz assim, a última hipótese que eles têm de ser gente é a escola.
Mas a escola, como ela funciona, com projetos discricionários, com
violência simbólica, organização prussiana, não tem sentido nenhum. O
que fazem dentro da escola, os jovens no fundo das salas com os fones
nos ouvidos enquanto os professores papagaiam a aula? Isso não pode
ser. E os intervalos, que são exibições de bullying gratuito, das quais o
professor foge para não se intrometer, porque também pode ser agredido,
o que é isso? É uma insanidade. E continua a se perpetuar isso na
escola e, acima dela, na sociedade. Até porque a escola é o modelo da
sociedade.
Fórum – O senhor já trabalhou em projetos municipais? É possível implantar esse tipo de projeto em uma cidade ou em um estado?
Pacheco – Essa questão me é colocada, em geral, de outra forma. E dito normalmente assim: “Você não sabe o que diz porque nunca esteve no poder”. E aí eu respondo que fui prefeito da minha cidade. Sei que é possível fazê-lo por meio do poder. Eu fui prefeito, fui vereador, eu sei. Eu fui ajudar a fazer a Revolução dos Cravos, eu sei. Quando é preciso, faça-se. Quando se tem poder, exerça-se. Preciso dizer que em várias cidades e municípios onde eu vou, solidariamente, fraternalmente, há prefeitos e secretários que já entenderam e estão a alcançar, cada um a seu modo, processos de mudança que vão ser uma surpresa para o Brasil. Ao mesmo tempo, o Âncora vai partilhar aquilo que está construindo, e isso vai permitir que venham gente dessas cidades, dessas prefeituras, para partilhar conosco o que aqui fazemos, que se chama comunidade de aprendizagem. E que não é mais um conceito para fazer tese de doutoramento, é uma visão de sociedade. E é o futuro. Precisamos de comunidades de aprendizagem. Fixai a expressão. Não as comunidades de aprendizagem que já andam por aí, mas as comunidades de aprendizagem que sejam vizinhanças solidárias, que partam das necessidades concretas e dos sonhos e promovam um desenvolvimento humano sustentável. É disso que se trata. A escola, está lá dentro.
Pacheco – Essa questão me é colocada, em geral, de outra forma. E dito normalmente assim: “Você não sabe o que diz porque nunca esteve no poder”. E aí eu respondo que fui prefeito da minha cidade. Sei que é possível fazê-lo por meio do poder. Eu fui prefeito, fui vereador, eu sei. Eu fui ajudar a fazer a Revolução dos Cravos, eu sei. Quando é preciso, faça-se. Quando se tem poder, exerça-se. Preciso dizer que em várias cidades e municípios onde eu vou, solidariamente, fraternalmente, há prefeitos e secretários que já entenderam e estão a alcançar, cada um a seu modo, processos de mudança que vão ser uma surpresa para o Brasil. Ao mesmo tempo, o Âncora vai partilhar aquilo que está construindo, e isso vai permitir que venham gente dessas cidades, dessas prefeituras, para partilhar conosco o que aqui fazemos, que se chama comunidade de aprendizagem. E que não é mais um conceito para fazer tese de doutoramento, é uma visão de sociedade. E é o futuro. Precisamos de comunidades de aprendizagem. Fixai a expressão. Não as comunidades de aprendizagem que já andam por aí, mas as comunidades de aprendizagem que sejam vizinhanças solidárias, que partam das necessidades concretas e dos sonhos e promovam um desenvolvimento humano sustentável. É disso que se trata. A escola, está lá dentro.
Fórum – Pelo que conversamos esse modelo também não é caro.
Pacheco – Esses projetos são mais baratos, mais eficientes, mais eficazes.
Fórum –
Falando em recursos, os salários dos professores no Brasil são baixos.
Os salários daqui do Projeto Âncora são os mesmos da rede?
Pacheco – Aqui
o salário também é baixo porque estamos a lutar com algumas
dificuldades, mas presumo que dentro de dois a três anos, todos – e
quando eu digo todos falo desde o coordenador ao cozinheiro, passando
pelo jardineiro e o professor – ganhem o mesmo e ganhem talvez o triplo
do que qualquer professor da escola pública. Isso é possível. Aliás, é
possível que os professores brasileiros ganhem muito mais do que ganham.
E que tenham um estatuto social menos depreciado. Basta enxugar
despesas e dar autonomia à escola. Por exemplo, não é preciso livro
didático nem uniforme, nem pagamento suplementar a diretor, nem é
preciso diretor, nem é preciso ponto, nem é preciso coordenador, nem é
preciso merenda escolar ou transporte escolar, não é preciso nada disso,
nem é preciso consumos, nem é preciso papel higiênico, nem é preciso
edifícios de escola. Eu não estou dizendo para derrubar os edifícios de
escola ou tirar papel higiênico do banheiro, não é isso que eu estou
dizendo, é que tudo isso pode ser enxugado. E tudo isso poderia ser
feito desfazendo-se o edifício burocrático que se chama MEC, que é cheio
de gente que não faz nada, que não produz conhecimento, não ajuda a
melhorar a aprendizagem. Então, se nós tivéssemos a possibilidade de
enxugar tudo isso, eu penso que os professores brasileiros ganhariam
entre 15 a 20 mil reais cada. Enquanto continuar o desperdício, eles vão
continuar a ganhar miseravelmente. Vão precisar ir de escola em escola
ganhar o pão de cada dia. Mas a responsabilidade também é do professor. A
responsabilidade também é dos órgãos de representação dos professores,
que vivem numa perspectiva corporativista. Enquanto os professores não
se afirmarem como pedagogos, enquanto se deixarem governar por
burocratas, vão continuar à mercê daquilo que têm: baixo salário e um
estatuto social depreciado.
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