quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

BULLYING

Referência: GARCIA, Agnaldo (org). Pesquisas sobre o Relacionamento Interpessoal. Vitória: Editora da ABPRI, 2010, NO PRELO.

Bullying: de onde vem a Violência que assola a Escola?

Luciene Regina Paulino Tognetta[1]

“O que me preocupa não é o grito dos maus. É o silêncio dos bons”.Adaptado de Martin Luther King

Resumo:
Entre as urgentes preocupações que assolam a educação mundial, o tema dos conflitos tem sido alvo de constantes discussões entre aqueles que se esforçam por traduzir ações que possam contribuir para a superação da problemática da violência, da agressividade e da indisciplina em contextos escolares. Por certo, tal preocupação é extremamente relevante.  No entanto, a literatura parece propensa apenas a validar uma única forma de problema na escola: a indisciplina. Esta é, convenhamos, uma preocupação legítima, pois se constata na escola inúmeras cenas de desrespeito às normas de condutas. Contudo, não pode ser a única, visto que milhões de crianças e adolescentes sofrem calados os dramas do desrespeito a si pelos próprios pares e mesmo pelos seus professores. Para tratar desse tema, é preciso pensá-lo na ambigüidade de sua natureza gestacional. Objetivando diagnosticar a realidade de meninos e meninas que se sentem menosprezados, humilhados ou maltratados na escola, diferentes estudos têm nos permitido encontrar uma faceta escondida na escola: crianças e adolescentes nos revelam que há na escola muitos episódios de violência advinda de seus pares assim como uma violência velada do próprio professor que, com ofensas verbais, exposição pública e outras formas de intervenção, deixa clara a falta de formação, de reflexão e de maneiras mais equilibradas e adequadas de intervenção nos conflitos interpessoais.

Palavras-chave: violência, indisciplina, bullying, psicologia moral.










Existe um grande problema nas questões de como educamos nossos meninos e meninas exatamente porque a leitura que fazemos dos problemas de violência na escola e entre eles o bullying, é sempre através das manifestações mais evidentes ao menos aos olhos das autoridades escolares: pela indisciplina. As situações de indisciplina indicam a não obediência às regras, o que convenhamos, para os professores, significa muitas vezes desobedecer às figuras que fazem a regra[2]. Estamos acostumados a agir pautados na perspectiva de que as regras existem em função da obediência à autoridade e para dar conta de tal ordem estabelecida, comumente usamos formas de punições, que são também tão violentas quanto às formas de violência que assistimos em nossas escolas. Por certo, parece que quando discutimos esses problemas falamos sob apenas uma perspectiva, instigados comumente pela mídia que a retrata: da violência cometida por nossos alunos contra os professores. Numa pesquisa recente realizada pela APEOESP, órgão sindical dos professores de escolas públicas do Estado de São Paulo, em 2008, dos 580 questionários respondidos por educadores da rede estadual de ensino, apurou-se que 24% dos professores já haviam sido vítimas de violência física; 43%
 disseram ter sido alvos de palavras xingamentos; 30% se referiram a humilhações que passaram e 27% foram alvo de agressões verbais e intimidações. Outra pesquisa, agora da FIPE, financiada pelo MEC[3] em 2009 chama também a atenção para a violência na escola: “quase 9% dos professores e 8% dos funcionários de escola pública do país sofreram, por parte dos alunos, algum tipo de discriminação, como agressão física, acusação injusta ou humilhação”. Dados como esses parecem descrever um cenário de relações em que alunos e professores não se entendem e em que os últimos, vitimados pelo sistema que não pune os vilões da história, parecem não saber o que fazer.
Entretanto, não pensamos nas formas de violências que nós, professores, podemos utilizar com nossos alunos, muitas vezes expondo-os, humilhando-os, aplicando-lhes sanções que os fazem persistir na convicção de que as regras existem porque a autoridade ali está e as cobra veementemente. Contudo, essas formas de violência que a escola se utiliza para combater o que também chama de violência por parte dos alunos não são explícitas, são veladas, sutis. Aqui se esconde outro problema, que é uma crença de que as crianças sentem de maneira diferente de nós. E que as crianças não se sentiriam humilhadas, menosprezadas, atacadas pelos adultos quando colocadas em situação de exposição. Porque nós não teríamos coragem de fazer isso com o adulto, mas fazemos isso constantemente com as crianças[4]? Isso, portanto, requer um olhar atento aos problemas infantis, exatamente aqueles que se referem a como nossas crianças têm sido desrespeitadas.
 Antes ainda de passarmos ao enfrentamento da questão central dessa reflexão sobre o bullying, é preciso ir adiante nesta discussão sobre os problemas de violência notadamente percebidos pelos professores como desrespeito às regras que sustentam as relações na escola. Sim, pois, é preciso lembrar que comumente nos incomodamos com pequenos fatos cotidianos e criamos novas regras, como aquela que proíbe o uso do boné, que não sustentam um valor moral como o respeito a toda e qualquer pessoa. Perdemos nosso tempo com esse tipo de regra e não damos a devida atenção às questões morais. Bilhetinhos ou torpedos durante a aula nos aborrecem. Celular, chinelos ou shorts curtos nos incomodam, no entanto, tais ações não nos fazem repensar a necessidade de que nossas aulas possam trazer sentido aos alunos para que esses se interessem de fato por aquilo que é bem maior – o conhecimento e o uso deste em benefício do homem. Gastamos tempo demasiadamente grande com discursos sobre a importância do uniforme não composto pelo boné, mas não paramos para discutir os problemas que acontecem nos recreios em que meninos e meninas são deixados de lado, são ameaçados por não serem “iguais” aos demais...
 Tudo isso para mostrar que a escola se preocupa demasiadamente com os problemas de indisciplina e se esquece de um problema que é freqüente entre meninos e meninas – o bullying. Vamos a ele. Uma forma de violência não necessariamente dessa geração visto que é um problema de seres humanos que têm algo em comum desde o primeiro momento em que nascem - a necessidade de serem vistos como valor nas relações que estabelecem com os outros. Um problema que é muitas vezes esquecido pela escola, primeiro porque aqueles que inserem as futuras gerações no mundo moral se incomodam mais com situações de indisciplina, segundo, pois concebem que os problemas das crianças não são relevantes já que acreditam que elas não sentem como nós adultos.
Primeiramente, vamos apontar suas características principais para entender, posteriormente, como podemos agir. Sim, pois, para agirmos contra aquilo que nos angustia quando vemos nossas crianças passarem por situações de violência precisamos primeiro identificar o problema e compreender suas características.
Bullying é uma forma de intimidação entre pares, ou seja, entre crianças[5], entre adolescentes ou entre adultos. Não chamamos de bullying quando a violência é entre pais e filhos, ou entre professor e aluno e sim; a esse respeito, chamamos assédio moral.
O prefixo inglês Bull remetendo-se a touro simboliza a força física ou psicológica daquele que é o Bully ou autor. Este escolhe um alvo frágil para passar por situações constrangedoras, batendo, xingando, inventando mentiras a seu respeito, roubando, deixando de lado em grupo de trabalho ou times, usando a internet para enviar comentários maldosos, etc. Todas são situações de bullying, marcadas pela violência. Entretanto, existem algumas características importantes que diferenciam esse fenômeno de outras formas de violência. Temos insistido nelas justamente pelo fato de que o conjunto dessas características nos leva a um fenômeno diferente que não poderia ser traduzido como ‘maus tratos’ entre iguais ou apenas como ‘maus tratos’[6].
A primeira delas é que não são brincadeiras momentâneas e esporádicas, mas ações repetidas sempre com um mesmo alvo fazendo com que a vida desse último se torne um inferno e, portanto, que sua rotina seja marcada pela incidência de violência. A segunda característica dessa forma de violência é a intencionalidade das agressões: esses meninos e meninas, que são autores do bullying, querem fazer com que o outro se sinta menosprezado, diminuído e exposto, ou seja, há a intenção de ferir e que exige de nós um esforço para pensar nas correções necessárias a essa forma de desrespeito com o outro. Querem ser vistos como líderes, ou como melhores ou como maiores naquilo que atribuem como valor. Nessa segunda característica, a intenção de ferir gera no autor uma espécie de prazer. Existem alguns estudos das neurociências que mostram que esses meninos, ao agirem mal, têm liberado uma substância orgânica que lhes gera uma sensação de prazer. Se nossas reflexões parassem por aqui, obviamente poderíamos supor que rigorosamente o que falta a esses meninos e meninas autores de bullying seria a punição, pois são ‘maus’. É preciso então, ainda que não adentremos as ações que podemos e devemos tomar como intervenções, nos lembrar que tais crianças e adolescentes, embora sintam prazer em provocar os outros, precisam ser vistos como também necessitando de ajuda, pois carecem de um ‘mal’ cujo remédio também é de responsabilidade da escola: carecem de sensibilidade moral (a que se referiu Smith, 1999, quando tratou da necessária participação dos sentimentos numa ação moral) uma espécie de capacidade de sair de si, do ponto de vista cognitivo e afetivo para ver o outro como um sujeito digno de respeito[7] (Tognetta, 2010). Veremos ainda como podem e devem ser nossas intervenções ao considerarmos essa demanda.
 Uma terceira característica é que existe um alvo além de um autor. A atribuição dessas nomenclaturas[8] permite-nos superar um estereotipo que tem sido constante nos estudos de bullying e nas propostas que se tem, principalmente em termos de políticas de intervenções: chamávamos os protagonistas desse fenômeno como agressores e vítimas; quando falamos em ‘agressor’ pensamos em um sujeito ‘mau’, e quando falamos em ‘vítima’ atribuímos a ela um sentimento de piedade que parece por si só resolver a situação – agimos por ela e não suscitamos no alvo de bullying, ao sentir pena, a necessidade de se defender. Portanto, a alteração dos nomes não é somente uma mudança de linguagem, mas de significação.
Por certo, os autores de bullying, embora tenham a intenção de ferir, também precisam de ajuda porque não conseguem se ver como valor (no sentido moral e não estético ou socialmente estabelecido), são muitas vezes incapazes de reconhecer seus próprios sentimentos e consequentemente os sentimentos dos outros. Por sua vez, os alvos de bullying são meninos e meninas vitimizados pelos estereótipos sociais e por isso sofrem. Sim, pois estes alvos comumente têm uma característica que foge do que é culturalmente estabelecido: usam óculos, choram demais, são gordinhos ou tímidos, ou seja, têm um padrão e um comportamento que os diferencia dos demais.
Contudo, ainda que caibam as explicações das ciências sociais para a necessidade de se pensar o bullying do ponto de vista do preconceito, nos parece pouco para pensar a grandeza desse fenômeno: como explicamos o fato de que nem todo mundo que usa óculos, ou que é baixinho, ou gordinho, por exemplo, se torna alvo de bullying? Exatamente porque essa é a imagem que têm de si, ou seja, quem se torna alvo de bullying concorda com aquela imagem que os outros apresentam dele se sentindo por isso menosprezado e sem forças para reagir aos escárnios a que são submetidos. Eis a contribuição da Psicologia Moral: bullying é um problema moral e pode ser entendido sob a perspectiva dos avanços nos estudos desta ciência. Meninos e meninas precisam sentir por si um auto-respeito que os levem a respeitar o outro.  Alvos de bullying assim o são até que não consigam enfrentar seus próprios medos e desafios por se sentirem desrespeitados. Nossas investigações atuais têm nos apresentado notadamente tais pressupostos: interessantemente, numa pesquisa com 63 adolescentes que se envolvem em cyberbullying (bullying no espaço virtual) 20 meninos e meninas que se apresentaram como já tendo sido vitimizados por algozes na internet, quando foram questionados sobre seus sentimentos em relação a outras vítimas que sofriam ataques, 30% das respostas se referiram ao “merecimento” desses alvos (Tognetta & Bozza, 2010). Isso denota o quanto os alvos de bullying o são em função de certa concordância com aqueles valores aos quais são relacionados.
Outra característica importante é que o bullying, diferentemente do que se apresenta no senso comum, não é um fenômeno de violência que acontece entre professor e aluno, como já dissemos anteriormente. Bullying é uma forma de violência que acontece numa simetria de poder instituído em que não há alguém com menos ou mais autoridade. Se existem formas de violências do aluno para com o professor, ou se existem formas de intimidação, de humilhação ou de exposição do professor para com a criança, essas são formas de violência, mas não podemos caracterizar como bullying.
A próxima característica é uma das mais imprescindíveis para pensarmos na nossa atuação em sala de aula, exatamente pelo fato de que o que caracteriza o autor de bullying é a necessidade de manter uma boa imagem diante dos outros. O autor precisa se sentir aceito, precisa se sentir valor. Se ele tem essa necessidade onde estará o fator que vai motivar as suas ações? No público, ou seja, na platéia que assiste ao espetáculo.
Interessantemente, podemos pensar que boas soluções para combater o bullying na escola, implicariam então, formas de ajudar os nossos meninos e meninas que são em número muito maior- o público, a se indignarem contra as injustiças que vêem dia-a-dia. Isso porque, novamente, é o que temos encontrado em nossas investigações atuais e que correspondem aos dados elucidados em outras pesquisas mundialmente reconhecidas (Almeida et al, 2003; Avilés & Casares, 2005; Fante, 2005). Numa investigação com 150 adolescentes do nono ano de Ensino Fundamental II e primeiro ano do Ensino Médio de escolas públicas da região metropolitana de Campinas (Tognetta et al), encontramos números que assim descrevem essa forma de violência entre pares: 16% de nossa amostra foi considerada entre autores convictos cujas ações de bullying são reveladas na freqüência contínua de seus ataques; 29,3% são aqueles autores que eventualmente se colocam, muitas vezes como forma de proteção e revanche, como autores esporádicos de uma forma de violência que se pareceria com aquelas consideradas bullying; 60% como aqueles que já passaram por processos de vitimização e finalmente, 92% que dizem já terem assistido a alguma situação de bullying na escola. Vejamos: quase que a totalidade dos alunos já assistiram a cenas desse tipo de violência na escola, já foram, portanto, “público”. É ele quem dá a atenção e assim promove o autor. Bullying é um fenômeno escondido aos olhos do professor, os quais estão mais atentos a situações que os afetam diretamente, mas não é escondido aos olhos dos alunos. O autor fará os colegas ou até a classe inteira saber que chamou um colega de um apelido que ele não gosta, porque é essa a maior recompensa de um autor de bullying: ver a dor do outro com seu sucesso diante dos outros. Quanto mais souberem daquilo que ele é capaz de provocar em alguém, mais satisfeito ele se sente.
As pesquisas mais recentes realizadas por Fante (2005) mostram que na região de Rio Preto a violência chamada bullying existe. Outras, conduzidas por Mascarenhas (2009) na região norte do país também atestam a urgência das intervenções. Na região de Campinas encontramos em 2010 (como já mencionados anteriormente) dados também alarmantes. Em 2004 e 2005, conduzimos investigações que puderam constatar o fato em nossa região (Tognetta & Vinha, 2010a). Naquela ocasião, perguntamos a cerca de 800 crianças e adolescentes de escolas públicas e particulares da região de Campinas: “Você já foi humilhado, diminuído, desprezado ou caçoado por parte de alguns alunos?”, para sabermos se essas crianças se viam muitas vezes como alvo de bullying dos seus pares, e assim pensarmos em intervenções para essas questões de agressividade que não chegam até nós. Entretanto, introduzimos uma pergunta (“Você já foi humilhado, diminuído, desprezado ou caçoado por algum de seus professores?”) neste mesmo questionário que dizia a respeito de situações de violência na escola advindas de outras fontes. Para nossa surpresa o grande problema que encontramos foi, além do bullying, o fato de que crianças e adolescentes serem vítimas dos próprios professores. Numa das amostras, do 4º ano do Ensino Fundamental ao 2º ano do Ensino Médio encontramos 22% de respostas que indicaram já terem sido menosprezados, ameaçados, zombados pelos professores. Não podemos dizer que este seja um número pequeno quando pensamos em pessoas. A violência é tão velada que não pensamos que as formas de atuação de um professor também podem levar as crianças a serem alvos e autores de bullying, ainda que indiretamente. Isso porque, imaginemos a seguinte situação: em determinada escola conhecida por nós e em que conduzimos as pesquisas de 2004 e 2005 na região de Campinas, os pais de dez principais alunos que eram considerados “terríveis” pela escola são convocados para uma reunião em que os filhos estão presentes. Coletivamente a professora vai apontando os defeitos de cada um desses alunos na frente de todos. Seus pais, sentindo-se ridicularizados, culpados... É dessa forma velada, não intencional, que também a escola expõe suas violências: expõe publicamente o que deveria ser particular. Infelizmente um dos grandes equívocos da escola, além de todos os já citados, é que trabalhamos o que é público como particular e o que é particular como público: quando temos uma ‘briga de galo’ – aqueles momentos em que há espectadores que se rejubilam com a briga de outros dois, constantemente como resolvemos?  Encaminhamos os ‘brigões’ para a direção e pedimos ao grupo que se aglomera que se disperse. O problema era público e não particular. Todos estavam, de alguma forma, envolvidos ainda que pela ausência de indignação a essa situação de injustiça. Todos deveriam ser questionados: e se fosse com você? O que vocês poderiam ter feito para impedir que essa briga acontecesse? Tudo isso para que aqueles que são indiferentes se sintam implicados a tomar uma posição, para que se indignem com as injustiças na escola.
Há de fato uma explicação para que crianças e adolescentes cada vez mais se distanciem de pensar no coletivo da escola, como vimos numa investigação realizada com outros 150 estudantes de escolas públicas e particulares do Estado de São Paulo em 2009: falta-lhes indignação ao que é público, pois se encontram pensando numa espécie justiça apenas auto-referenciada sem se implicar com os outros (Tognetta & Vinha, 2009).
De fato, embora seja objetivo da escola que as crianças e adolescentes se sintam responsáveis pelo que é público, pouco fazemos para chegar a tal realização. Realizamos outra pesquisa na região de São Paulo (Tognetta & Vinha, 2010b), com 100 crianças e adolescentes, perguntando se já tinham visto ou tinham sido tirados da sala de aula para permanecerem no corredor de castigo, ou então, excluídos da sala e colocados em exposição pública. Esses meninos apresentaram altos índices de exclusão deles ou de colegas da sala de aula. E o interessante é que perguntamos também quanto tempo durava essa exposição na sala de aula ao que obtivemos diferentes respostas como de 3-5 minutos, 10 minutos, 1 hora, e alguns responderam “muito tempo”. O que seria “muito tempo” para uma criança? Na verdade seu tempo psicológico é o que está em jogo, não podemos caracterizar se são 5 minutos, 1 minuto, 10 minutos ou 50 minutos ou quantos minutos e horas são de fato, mas, na verdade, uma grande porção de tempo de exposição.
Por certo, essa pesquisa nos dá um viés enorme para pensarmos como vamos combater a violência entre pares na escola, cuja própria escola é fonte de violência, em que aqueles que formam não consideram que as crianças têm sentimentos e consideram que a moral deve ser algo a ser tratada sempre publicamente. Vejamos como é difícil levar para frente uma proposta de intervenção ao bullying se na verdade, precisamos inicialmente formar os educadores, ajudá-los a pensar e a lidar com quaisquer situações rotineiras, para depois então intervir em casos específicos de bullying.
Não significa que os professores tenham realmente culpa dessa situação, até porque eles não sabem o que fazer, não há tempo para discutir sobre isso em sala de aula, nos cursos de graduação; são poucas horas para tais discussões em disciplinas de Psicologia da Educação. Não se trata de procurar culpados, mas, de fato, entender que está na formação dos professores um canal para a compreensão desse fenômeno humano e a possibilidade de intervenção.
Falta-nos, portanto formação adequada para fazer com que esses meninos e meninas se indignem com situações de injustiça. Falta-nos, enquanto professores, olhar para o bullying não como brincadeira, mas exatamente como mais uma oportunidade de, a partir de um conflito, se aprender a conviver. As pesquisas em psicologia moral vão defender que é verdadeira a necessidade de que se tenha consciência das regras que regulam a convivência humana, mas que é preciso mais que isso: é preciso um querer, que nos move a agir. Portanto, é preciso trabalhar com os sentimentos desses meninos e meninas que pouco se sensibilizam com os outros, por isso os questionamos: como vocês se sentiriam se fossem chamados desse jeito? Como as pessoas se sentem nessa situação?
Esquecemo-nos que generosidade, misericórdia, sensibilidade à dor do outro, são construídas na relação entre pares, e não através do processo de “ensinamentos da moral”. Ou seja, na verdade tentamos acreditar que somos nós que ensinamos e todo trabalho de disciplinar é nosso. O fato é que uma forma promissora de superar o bullying é quando as crianças são instigadas, levadas e ajudadas a dizer a quem é de direito a maneira como se sentem, a buscar soluções alternativas para os problemas que têm no cotidiano, a dizer como são tratadas e como gostariam que fossem respeitadas para que de fato possam tomar consciência de seu valor e do outro.
Dessa forma, superar formas de violência significa dar a essas crianças espaços para que elas possam compreender que existem outras maneiras de se resolver um conflito. Pouco adianta punir o autor de bullying e afirmar que ele é mau já que é preciso ajudá-lo a perceber a perspectiva do outro. E como fazemos isso? Primeiro este outro terá que falar como se sente e não o professor, porque quando falamos, o valor está em nos obedecer e não respeitar àquele que sofreu as ofensas. Por essa razão crianças e adolescentes precisam ser acostumadas a dizer como se sentem. Esses alunos, autores ou alvos, infelizmente, não têm espaço para dizer como se sentem, se chateados ou revoltados, porque quando se sentem revoltados agem da mesma maneira, causando revolta nos outros. Há algo já nos revelado por Winnicott (1999): “a manifestação de um comportamento agressivo da criança, é na verdade a dramatização de um mau interior que é ruim de mais para ser tolerado como tal”, ou seja, há muitas vezes algo de errado com aquele que agride somado a uma necessidade de se sentir valor, própria do ser humano como nos alertou Adler (Tognetta, 2009) e para isso precisa primeiro ser respeitado pelas suas autoridades, dizendo o que pensa, o que sente... Se auto conhecer para poder reconhecer como se sente em diferentes situações e assim respeitar os outros. É por isso que temos insistido em atividades e jogos para ajudar essas crianças a reconhecer como se sentem em diferentes situações que vivem (Tognetta, 2003; 2009).
Enfim, em uma palavra, as ações iniciais para vencer o bullying precisam ser da escola. Infelizmente, o que temos hoje como nos recorda Leme (2006) é um “processo de terceirização” dessas ações formadoras já que acreditamos que chamar o conselho tutelar, discar 0800... Resolveremos o problema de bullying. É dentro da escola que as ações para ajudar essas crianças e adolescentes a superarem esses atos violentos, a falta de valor, a ausência de reconhecimento de sentimentos deve começar.
Nossas investigações têm provado que o bullying é um problema moral[9] e, portanto a constituição de um ambiente cooperativo mais do que ações pontuais aos dramas cotidianos é necessária.
E nossa última palavra: precisamos resgatar a idéia de que meninos e meninas que desrespeitam os outros também se sentem desrespeitados primeiro. Respeitar as crianças (o que não significa permitir o desrespeito como pensamos ter evidenciado) é nosso grande desafio para vencer, não só as situações de bullying, mas qualquer outro tipo de violência na escola.

Referências bibliográficas
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[1] Coordenadora da linha de pesquisa “Afetividade e Virtudes” do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Moral – Unesp/Unicamp.
[2] Uma característica da heteronomia é acreditar que as regras existem em função da autoridade. Crianças pequenas explicam o valor da regra em razão da existência de alguém que devido ao seu não cumprimento, pode punir (Piaget, 1932). Lamentavelmente, muitos adultos também acreditam que as regras existem somente em função da autoridade e guardam ‘dinheiro público nas meias’ quando acham que não estão sendo vistos....
[3] http://g1.globo.com/Noticias acesso em 17/06/09 - 16h02 - Atualizado em 17/06/09 - 18h24 .
[4] Elkind (1975) apresenta vários equívocos que enquanto adultos temos para com o desenvolvimento infantil: um deles é que de fato, as crianças seriam diferentes quanto aos seus sentimentos – não se sentiriam constrangidas quando chamamos sua atenção na frente de todos, ou não se sentiriam humilhadas quando nos voltamos aos outros para questionar sobre sua atitude. Porém constantemente, acreditamos que as crianças ‘pensam’ como os adultos conseguindo manter-se, por exemplo, quatro horas a fio, sentadas para ‘aprender’: crianças, principalmente cujo pensamento pré-lógico persiste,  precisam da ação – brincar, pegar,puxar, falar para que seu pensamento possa se desenvolver.
[5] De acordo com Ruiz & Mora-merchán (1997) há pesquisas que comprovam que crianças a partir dos 3 anos de idade já se envolvem em situações de bullying.
[6] Para mais explicações sobre o uso da palavra em inglês bullying ver Tognetta, 2010.
[7] Por essa e outras razões ainda trataremos o bullying do ponto de vista das imagens que os sujeitos desejam e têm de si diante dos outros e dessa forma pensamos que a inserção do tema do bullying no universo da Psicologia Moral é promissor.
[8] Maiores discussões o leitor pode encontrar em Tognetta & Vinha (2008).
[9] Numa investigação com 63 adolescentes, não encontramos, entre meninos e meninas que são autores de cyberbullying, aqueles cujas representações de si aspiram por conteúdos éticos, ou seja: as imagens de si que aspiram autores de bullying ou cyberbullying são aquelas ligadas à estereótipos sociais ou a conteúdos individualistas que não integram a si e ao outro como sujeitos que precisam de tolerância, justiça ou qualquer outra virtude(Tognetta & Bozza, 2010).  

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